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Leituras 10/09/2011 4 Comentários

Canibal de Moacyr Scliar

Gosto muito deste texto do médico e escritor Moacyr Scliar. Neste texto, ele mostra de forma alegórica a ganância dos seres humanos naqueles momentos em que o caminho da razão seria o de compartilhamento. Além disso, ele mostra que a corda arrebenta sempre para o lado mais fraco. Leia e aprecie!


Em 1950, duas moças sobrevoaram os desolados altiplanos da Bolívia. O avião, um Piper, era pilotado por Bárbara; bela mulher, alta e loira, casada com um rico fazendeiro de Mato Grosso. Sua companheira, Angelina, apresentava-se como uma criatura esguia e escura, de grandes olhos assustados. As duas eram irmãs de criação.

O sol declinava no horizonte, quando o avião teve uma pane. Manobrando desesperadamente, Bárbara conseguiu fazer uma aterrissagem forçada num platô. O avião, porém, ficou completamente destruído, e as duas mulheres encontravam-se, completamente sós, a milhares de quilômetros da vila mais próxima.
Felizmente (e talvez prevendo esta eventualidade), Bárbara trazia consigo um grande baú, contendo os mais diversos víveres: rum Bacardi, anchovas, castanhas-do-pará, caviar do Mar Negro, morangos, rins grelhados, compota de abacaxi, queijo-de-minas, vidros de vitaminas. Esta mala estava intacta.

Na manhã seguinte, Angelina teve fome. Pediu a Bárbara que lhe fornecesse um pouco de comida. Bárbara fez-lhe ver que não podia concordar; os víveres pertenciam a ela, Bárbara, e não a Angelina. Resignada, Angelina afastou-se, à procura de frutos ou raízes. Nada encontrou; a região era completamente árida. Assim, naquele dia ela nada comeu.

Nem nos três dias subseqüentes. Bárbara, ao contrário, engordada a olhos vistos, talvez pela inatividade, uma vez que contentava-se em ficar deitada, comendo e esperando que o socorro aparecesse. Angelina, pelo contrário, caminhava de um lado para outro, chorando e lamentando-se, o que só contribuía para aumentar suas necessidades calóricas.

No quarto dia, enquanto Bárbara almoçava, Angelina aproximou-se dela, com uma faca na mão. Curiosa, Bárbara parou de mastigar a coxinha de galinha, e ficou observando a outra, que estava parada, completamente imóvel. De repente Angelina colocou a mão esquerda sobre uma pedra e de um golpe decepou o seu terceiro dedo. O sangue jorrou. Angelina levou a mão à boca e sugou o próprio sangue.
Como a hemorragia não cessasse, Bárbara fez um torniquete e aplicou-o à raiz do dedo. Em poucos minutos, o sangue parou de correr. Angelina apanhou o dedo do chão, limpou-o e devorou-o até os ossinhos. A unha, jogou-a fora, porque em criança tinham-lhe proibido roer unhas – feio vício.

Bárbara observou-a em silêncio. Quando Angelina terminou de comer, pediu-lhe uma falange; quebrou-a, e com a lasca, palitou os dentes. Depois ficaram conversando, lembrando cenas da infância etc.
Nos dias seguintes, Angelina comeu os dedos das mãos, depois os dos pés. Seguiram-se as pernas e as coxas.
Bárbara ajudava-a a preparar as refeições, aplicando torniquetes, ensinando como aproveitar o tutano dos ossos etc.
No décimo quinto dia, Angelina viu-se obrigada a abrir o ventre. O primeiro órgão que extraiu foi o fígado. Como estava com muita fome, devorou-o cru, apesar dos avisos de Bárbara, para que fritasse primeiro. Como resultado, ao fim da refeição, continuava com fome. Pediu à Bárbara um pedaço de pão para passar no molhinho.

Bárbara negou-se a atender o pedido, relembrando as ponderações já feitas.
Depois do baço e dos ovários, Angelina passou ao intestino grosso, onde teve uma desagradável surpresa; além das fezes (achado habitual neste órgão), encontrou, na porção terminal, um grande tumor. Bárbara observou que era por isto que a outra não vinha se sentindo bem há meses. Angelina concordou, acrescentando: “É pena que eu tenha descoberto isto só agora.” Depois, perguntou à Bárbara se faria mal comer o câncer. Bárbara aconselhou-a a jogar fora esta porção, que já estava até meio apodrecida; lembrou os preceitos higiênicos que devem ser mantidos sempre, em qualquer situação.
No vigésimo dia, Angelina expirou; e foi no dia seguinte que a equipe de salvamento chegou ao altiplano. Ao verem o cadáver semidestruído, perguntaram a Bárbara o que tinha acontecido; e a moça, visando preservar intacta a reputação da irmã, mentiu pela primeira vez em sua vida:- Foram os índios.

Os jornais noticiaram a existência de índios antropófagos na Bolívia, o que não corresponde à realidade.

 

Você pode encontrar outros contos de Moacyr Scliar clicando em Academia Brasileira de Letras.

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Comentários

4 Comentários
  1. Havilla Rebeca

    02/02/2013

    Este comentário foi removido pelo autor.

    Responder
  1. Havilla Rebeca

    02/02/2013

    Eu achei no mesmo tempo uma historia assustadora
    e em outro momento uma historia relativamente espiradora para algumas pessoas que gosta de historias no mesmo tempo apreensiva e curiosa foi assim que eu me inspirei a ler !!!

    Responder
  1. Jonas

    27/11/2018

    Imagine que Bárbara seja os donos dos meios de produção, e que Angelina seja a classe operária.

    É realmente ridículo! Doutrinação é mais de 8000.

    Responder
    1. Rafael Alexandre

      04/01/2019

      Que comentário estúpido. Parabéns.

      Responder

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Janete Bridon

Revisora (Língua Portuguesa e Inglesa) e tradutora.

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